Apesar de ter ampliado o número de matrículas escolares e estar próximo de universalizar a educação obrigatória para crianças e jovens entre 4 e 17 anos, o Brasil patina nos índices de desempenho escolar e mantém enorme desigualdade entre seus jovens. Sete em cada dez alunos de 15 anos apresentam dificuldades em tarefas de matemática; e mais da metade dos estudantes têm baixo desempenho em leitura e em ciência, segundo estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgado em 2016.
Mas e se incluir a criança mais cedo na escola fosse uma forma de reduzir as desigualdades e influenciar decisivamente os resultados delas no futuro? Pesquisas apontam para isso: a experiência na educação infatil favorece o desenvolvimento intelectual e social das crianças. Um estudo feito no Reino Unido acompanhou 3 mil crianças ao longo de quatro anos e mostrou que o ingresso em ambiente escolar aos 3 anos está relacionado com maior desenvolvimento intelectual entre 6 e 7 anos, com maior autonomia, concentração e sociabilidade entre colegas. A pesquisa EPPE (The Effective Provision of Pre-school Education Project) revelou ainda que a experiência pré-escolar era importante, sobretudo, para crianças de famílias vulneráveis socialmente.
“As pesquisas internacionais têm mostrado que, na maioria dos casos, a frequência a pré-escolas para crianças de 3 a 5 ou 3 a 6 anos garante bons resultados, presentes e futuros, mesmo quando as pré-escolas não são de alta qualidade; no caso das creches para os bebês e crianças entre 0 e 2 anos e meio, os bons resultados ocorrem quando as creches são de boa qualidade”, explica Maria Malta Campos, coordenadora da pesquisa Educação Infantil no Brasil. Entre 2009 e 2010, seu grupo de estudo na Fundação Carlos Chagas avaliou a qualidade de 150 instituições de educação infantil em seis capitais brasileiras (Belém, Campo Grande, Florianópolis, Fortaleza, Rio de Janeiro e Teresina) para estimar o impacto da frequência a creches e pré-escolas no desempenho dos alunos no início do ensino fundamental. A análise constatou que idade do aluno, renda familiar e nível de escolaridade dos moradores do bairro respondiam por 11% das diferenças observadas entre o desempenho dos alunos na Provinha Brasil – avaliação nacional de alfabetização. No entanto, quando comparados estudantes com as mesmas condições, aqueles que tinham frequentado educação infantil de boa qualidade apresentavam um desempenho 12% melhor que os que não tinham frequentando o ensino de primeira infância.
Se o impacto positivo é reconhecido em vários estudos científicos, uma pesquisa publicada em 2013 alerta para algo preocupante: creches de má qualidade podem ter impacto negativo na educação de crianças pobres e aumentam a desigualdade. Foram analisadas as notas de matemática de alunos do 5º ano do ensino fundamental. Entre os mais pobres, as crianças que foram para a creche estavam piores que as que não tinham ido. Já entre os mais ricos, as notas das crianças que tinham frequentado a creche eram melhores, explica Daniel Santos, professor de economia da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto e pesquisador do eduLab21, laboratório de ciências aplicadas à educação criado pelo Instituto Ayrton Senna. “Esses resultados apontam, por evidência indireta, que a qualidade ruim do ensino tenha prejudicado essas crianças.”
O que é qualidade?
A educação infantil precisa considerar o direito da criança à proteção, ao cuidado, à saúde, ao afeto e ao desenvolvimento cognitivo, emocional e social. E, para que todos esses pontos sejam devidamente contemplados, são necessários profissionais capacitados, em número adequado e com um projeto com objetivos educacionais voltados para o momento de desenvolvimento das crianças, consenso entre especialistas.
Os primeiros anos de vida são um momento de intensa formação cerebral em que se desenvolvem conexões neurais, sobretudo de áreas corticais responsáveis por processamentos de estímulos sensoriais (visão, audição) e regiões relacionadas à linguagem (veja quadro na pág. 52). Essas conexões serão a base do desenvolvimento cognitivo ao longo da vida. Daí a importância de atividades com estímulos variados, sonoros, visuais, táteis para apoiar o desenvolvimento infantil adequado. “Uma educação infantil de qualidade tem intencionalidade, e isso é marcado por um currículo com objetivos claros. Por interações ricas entre professor e os alunos, que vão além da interação cotidiana”, indica Antonio Augusto Batista, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). E não é apenas isso. O vínculo afetivo, o desenvolvimento de habilidades sociais e os cuidados pessoais com saúde são essenciais.
Acesso às creches
De 2000 a 2015, o acesso à educação infantil cresceu 49,3% no país, de acordo com o Censo da Educação Básica, e as vagas em creches mais que duplicaram no período, partindo de 917 mil em 2000 e chegando a 2,7 milhões em 2015. No entanto, até 2014, apenas 29,6% das crianças de 0 a 3 anos eram atendidas em creches públicas ou privadas. Calcula-se que o déficit de vagas para essa etapa do ensino esteja na casa de 2,5 milhões.
“Para contemplar esse cenário, é importante considerar que o atendimento não vem crescendo igualmente entre as famílias com diferentes faixas de renda. A porcentagem de crianças com acesso a creche aumentou mais entre os 20% da população mais rica do que entre os 20% da população mais pobre”, lembra Beatriz Ferraz, gerente de educação infantil da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Além disso, o acesso cresceu muitas vezes à revelia do modelo de qualidade. Sob a responsabilidade dos municípios, que indicam falta de verba para garantir vagas na fase mais cara da escolarização, a entrada das crianças na educação infantil muitas vezes se dá com menos profissionais do que o necessário e infraestrutura inadequada.
A visão de que a creche é um lugar para que as crianças sejam cuidadas enquanto os responsáveis trabalham – e não um espaço educacional, como prevê a Lei de Diretrizes e Bases – favorece a abertura de centros infantis com poucos professores, com formação inadequada e baixa remuneração, muitas crianças, sem planejamento pedagógico e condições precárias de mobiliário e materiais. “Por trás de tudo isso, existe o descaso de muitas administrações municipais com essa etapa da educação”, aponta Malta Campos. A pesquisa conduzida pela Fundação Carlos Chagas apresentou falhas principalmente no oferecimento de atividades pedagógicas e nas rotinas de cuidado pessoal nas 150 instituições avaliadas.
Entre os problemas apontados está a falta de professores em número adequado para dar atenção necessária e ter percepção individual das crianças no início da vida. O Ministério da Educação (MEC) recomenda de 6 a 8 crianças por professor (no caso de crianças de 0 a 1 ano); 15 crianças por professor (no caso de crianças de 2 a 3 anos); e 20 crianças por professor (no caso de crianças de 4 e 5 anos).
“Uma prática muito utilizada é colocar um excesso de crianças na mesma sala com dois ou três adultos. Todas as pesquisas mostram que isso é nocivo para as crianças, pois adultos tendem a interagir com adultos, e não com as crianças, e, além disso, esses arranjos causam excesso de barulho, maior risco de contágio em crianças pequenas e a impossibilidade de desenvolver com elas atividades mais adequadas às faixas etárias mais próximas do nascimento”, alerta Malta Campos. “Apesar de as pesquisas mostrarem isso há bastante tempo, os municípios continuam a planejar unidades adotando esse modelo.”
Além dos baixos salários, outro problema é a troca de professores ao longo do ano escolar – colocando a perder os vínculos de confiança e o histórico de desenvolvimento de cada criança. “Rotatividade de professor, que é algo ruim sempre, na primeira idade é péssima para educação”, considera Daniel Santos. Para coroar, os especialistas indicam que a formação em boa parte dos cursos de pedagogia está muito longe da prática cotidiana da educação infantil. Assim, as especificidades dos primeiros anos são um desafio para esses professores.
Com mais de 20 anos de profissão, Erika Toshiê Kassawara se lembra do medo e da responsabilidade ao receber em 2013 o convite para assumir um berçário no CEI Jardim Carioca, em Campo Grande. “Os bebês são uma categoria da educação infantil que tem uma especificidade tremenda e demanda muito do profissional. Por ser uma fase delicada e de muita importância, não posso planejar (as aulas) de qualquer jeito”, comenta. Diante das dúvidas, ela e outras colegas criaram um grupo de estudos para entender melhor o que era a educação nos primeiros anos.
Das pesquisas e conversas, nasceu um projeto para integrar as famílias ao ambiente escolar. Os responsáveis pelos bebês eram convidados a entrar na escola e participar das atividades durante o período de adaptação das crianças – cerca de um mês – e a voltar depois para participar de atividades no berçário, como contação de histórias, banho, leituras, atividades pedagógicas. Com isso, a CEI Jardim Carioca teve dois resultados: as crianças choravam menos e se sentiam mais seguras no espaço escolar; os pais passaram a entender melhor o trabalho da educação e a apoiar a equipe. “Antes, as mães tinham uma concepção de que o berçário era um ambiente apenas de cuidar. Depois de verem nosso dia a dia, entediam que era bem mais do que isso, que a parte educacional é importante.”
“O vínculo que se dá por meio da garantia de relações seguras e confiáveis com educadores na creche é um elemento essencial para que o bebê se sinta seguro e encorajado a explorar o ambiente e, com isso, avançar em passos importantes para a sua autonomia”, assevera Beatriz Ferraz, da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Com o vínculo estabelecido, a equipe de Campo Grande aproveitava para levar às reuniões com os pais informações sobre a formação dos bebês e dicas de cuidado para casa. O projeto foi reconhecido pelo Ministério da Educação em 2015, e Kassawara levou o prêmio Professores do Brasil. Hoje, a pedagoga trabalha como técnica na secretaria municipal para ajudar na formação de professores e coordenadores da educação infantil da capital sul-mato-grossense.
Bom negócio para o país
Em 2015, os valores de referência do que seria o gasto por aluno de creche para ter uma educação de qualidade eram de R$ 10.005,59 para crianças de período integral e R$ 7.696,61 (para tempo parcial), segundo o índice Custo Aluno Qualidade (CAQ), criado pela ONG Campanha Nacional da Educação e previsto em lei do Plano Nacional da Educação (PNE).
O gasto indicado na primeira infância é mais do que o dobro do desejável para um aluno de ensino médio de tempo integral (R$ 4,8 mil). E, nas contas do professor da USP José Marcelino Rezende Pinto, os valores ideais são quase três vezes o investimento atual nessas crianças, de acordo com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb): R$ 2.576 (parcial) e R$ 3.349 (integral).
Mas, se é tão caro e os recursos da educação pública são limitados, vale a pena o investimento? Para o Nobel de Economia e professor da Universidade de Chicago James Heckman, vale. Heckman afirma que os gastos no desenvolvimento de crianças na primeira infância são capazes de reduzir a desigualdade e fortalecer a economia do país. Em um artigo publicado em 2012, o diretor do Centro de Economia para o Desenvolvimento Humano diz que “a mais alta taxa de retorno no desenvolvimento infantil se dá quando o gasto é feito o mais cedo possível, entre o nascimento e os 5 anos, para famílias em vulnerabilidade social”.
De acordo com os estudos de Heckman, os custos de curto prazo são mais do que compensados pelos benefícios de médio e longo prazos, como a redução de gastos com educação de jovens e adultos ou repetência, melhores índices de saúde, menor necessidade de serviços sociais, menores gastos com justiça criminal e aumento da autossuficiência e produtividade dessas famílias. Pesquisadores do Centro Criança-Pais de Chicago (Chicago Child-Parent Center) estimam um benefício de US$ 48 mil para o governo por criança de família em vulnerabilidade social que frequentou a pré-escola. Essas crianças, aos 20 anos, têm maior chance de ter completado o ensino médio, sem repetências, sem reforço escolar e sem ter passado pelo sistema judicial. A estimativa é que, para cada dólar investido na primeira infância, haja o retorno de US$ 7 no futuro (em crescimento da economia e redução de gastos).