Nota sobre o impacto do Projeto de Lei Complementar nº 18/2022, que altera a arrecadação do ICMS, nas condições de investimento na Educação Básica
O Todos Pela Educação expressa preocupação com a aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 18/2022, que pretende alterar a arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre combustíveis e energia elétrica em todos os estados brasileiros. Embora os congressistas tenham, em sua maioria, votado favoravelmente ao projeto com o objetivo de controlar a inflação e melhorar o bem-estar da população brasileira, a alteração da legislação impacta negativamente as condições de investimento público em Educação – justamente no momento mais desafiador para a recuperação dos direitos de aprendizagem das crianças. O Congresso deve agir com prudência para não penhorar o futuro do País em nome de efeitos macroeconômicos de curto prazo, os quais sequer são garantidos.
Segundo as estimativas do Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz), a limitação do ICMS aprovada pela Câmara dos Deputados produzirá uma frustração de arrecadação da ordem de R$ 64,2 bilhões e R$ 83,5 bilhões por ano para os estados e municípios brasileiros, entes federativos responsáveis por quase 80% das matrículas da Educação Básica. Ainda de acordo com o Comsefaz, a trava de perdas tributárias nominais construída como solução de equilíbrio tende a ser inócua, sem produzir recomposição orçamentária para nenhum estado senão aqueles em recuperação fiscal (Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul).
Tal proposta de redução abrupta do ICMS afeta diretamente a capacidade de investimento público em Educação porque no mínimo 25% de sua arrecadação deve ser destinada à manutenção e desenvolvimento de ensino, conforme o Art. 212 da Constituição Federal. Isso não quer dizer que o dano à Educação será necessariamente de 25% da frustração de arrecadação do ICMS, mas a aplicação mínima obrigatória nas redes municipais e estaduais cairá nessa proporção – o que tende a reduzir o investimento educacional principalmente nas localidades que aplicam valores próximos ao mínimo constitucional. Vale frisar que o ICMS é o principal imposto financiador da Educação, e que um quarto de sua arrecadação é compartilhada com os municípios. Além disso, o mesmo cenário desafiador será vivido na área da Saúde, onde também há vinculação tributária para investimentos públicos.
Se o cenário de impacto não é homogêneo em todo o país, há um efeito prejudicial à Educação em todos os estados que é inquestionável: o enfraquecimento do Fundeb. Em concordância com o Art. 212-A da Constituição Federal, 20% do ICMS arrecadado automaticamente alimenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que existe no âmbito de cada uma das 27 Unidades Federativas. O recurso de cada Fundeb estadual é redistribuído entre redes públicas de ensino de acordo com o número de matrículas, sendo a principal fonte de investimento educacional nas localidades de maior vulnerabilidade econômica. Adicionalmente, a União tem a responsabilidade de complementar os recursos do Fundeb onde há menor capacidade de arrecadação tributária. O funcionamento dessa política pública é responsável por reduzir 70% da desigualdade de investimentos em Educação e ampliar em dez vezes o investimento mínimo por aluno no país, conforme estimativas produzidas pelo Todos Pela Educação.
Na prática, se houver frustração de arrecadação do ICMS de R$ 83,5 bilhões em todo o território nacional, isso significará uma redução de até R$ 16,7 bilhões dos fundos estaduais do Fundeb, causando severas dificuldades sobretudo para os municípios que dependem dessa política pública para manterem em funcionamento suas redes de ensino. Além disso, significará uma redução de R$ 2,5 bilhões da complementação da União ao Fundeb, que hoje é fixada em 15% da soma dos fundos estaduais. Ao todo, a perda total do Fundeb, no cenário de 2022, será de R$ 19,2 bilhões, ou aproximadamente 8% de diminuição em termos nominais da principal política de financiamento da Educação Básica do país. Comparativamente, R$ 19 bilhões é mais do que a União destinou para a complementação da União ao Fundeb em 2021 e é praticamente cinco vezes o valor do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para 2022.
É importante salientar que a arrecadação maior em outros impostos não necessariamente irá contrabalancear a perda potencial no Fundeb. Primeiro, porque o ICMS representa cerca de 60% da cesta de impostos do Fundeb, portanto dificilmente excessos de arrecadação em outros impostos terão capacidade de equilibrar a conta. Segundo, porque receitas a mais em impostos como IPTU, ISS e ITBI não têm efeito positivo sobre o Fundeb, uma vez que não fazem parte da cesta tributária redistribuída pelo fundo. Também é importante lembrar que eventuais recomposições tributárias por parte da União devem ser expressamente vinculadas ao Fundeb em suas legislações, para que os recursos possam ser adequadamente redistribuídos na proporção de 20% conforme os critérios de matrículas, e para que possam ter reflexo em termos da complementação federal aos entes federativos mais vulneráveis.
Para os estados e municípios que mais dependem do Fundeb, a diminuição abrupta de arrecadação do ICMS sobre combustíveis pode produzir severas dificuldades de honrar o pagamento dos profissionais da Educação planejado para 2022. Ainda que não ocorra redução tributária nominal, o que vinha sendo considerado para os acordos de valorização remuneratória neste ano era um cenário de aumento da arrecadação. A frustração de receitas do ICMS pode fazer com que haja escassez de recursos no final do ano para comportar tais despesas adicionais de valorização salarial, necessárias tanto na perspectiva do cumprimento do piso salarial do magistério (que foi ampliado em 33,24% de 2021 para 2022) quanto no contexto de que estados e municípios não puderam dar nenhum reajuste aos servidores públicos entre 2020 e 2021 (em função da Lei Complementar Federal nº 173/2020).
Obras escolares e contratos educacionais que passaram por redimensionamentos de preço para refletir a inflação de custos também podem ser prejudicados. Isso significaria, potencialmente, atrasos na construção de creches, em reformas de infraestrutura escolar, carência de insumos didáticos e administrativos e até mesmo dificuldades de operação de redes de transporte escolar terceirizado.
Adicionalmente, para além de ameaçar investimentos básicos cujos valores já estão fixados, as redes municipais e estaduais podem vir a abdicar de estratégias já planejadas para as quais faltarão recursos, como expansão do atendimento em tempo integral, provisão de carga suplementar de trabalho docente para atividades de recuperação de aprendizagem, organização de equipes de psicólogos escolares e programas de formação de educadores. Tais investimentos são altamente necessários frente aos efeitos nocivos da pandemia nas condições de aprendizagem das crianças.
A prioridade de futuro do país, nesse momento, deve ser investir na Educação Básica. A proposta do PLP nº 18/2022, no entanto, promove o exato oposto. Durante a pandemia, saltou de 25% (2019) para 41% (2021) a proporção de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever (Pnad Contínua/IBGE). A desigualdade do indicador entre as famílias mais pobres e mais ricas aumentou em 50%. Por sua vez, a situação de saúde mental dos estudantes foi profundamente agravada – por exemplo, 70% dos estudantes da rede estadual de São Paulo relataram sintomas de depressão e ansiedade no retorno letivo. São indicadores que evidenciam o tamanho do desafio a ser vencido pelas gestões públicas na área da Educação, que precisarão de recursos financeiros para implementar políticas de largo impacto com foco na reversão dos danos no médio e no longo prazo.
À luz de tais perspectivas, a preocupação é que os congressistas deixem de considerar os prejuízos da perda de capacidade de investimento na Educação Básica em 2022. O PLP nº 18/2022 será votado no Senado Federal, e é importante que os senadores estejam alerta para os riscos de fragilização dos sistemas públicos de ensino em todo o Brasil. Diante disso, propomos:
- Em primeiro lugar, que as casas legislativas realizem a análise de impactos educacionais sempre que houver mudanças tributárias, assim como toda política educacional tem avaliado seu impacto fiscal-econômico na Câmara e no Senado. Tal prática considera adequadamente o arcabouço legal do sistema de vinculações de impostos e é fundamental para evitar descontinuidades em políticas essenciais ao desenvolvimento econômico de longo prazo do país, sendo necessário identificar a variação no valor aluno/ano total dos entes federativos afetados pelas mudanças.
- Além disso, que as casas legislativas promovam a escuta das representações de estados e municípios para debater os impactos reais das políticas tributárias nas áreas essenciais da gestão pública, tal como ocorreu durante a tramitação do Novo Fundeb entre 2017 e 2020. Vale frisar que há uma perceptível desconexão do Governo Federal com a realidade da gestão educacional nos estados e municípios, sendo de suma importância a atuação do Congresso Nacional no sentido de articulação interfederativa.
- Por fim, em caso de avanço da proposta de limitação da arrecadação do ICMS, que seja realizada recomposição federal de no mínimo 37% das perdas tributárias dos estados e 40% das perdas tributárias dos municípios, em esforço conjunto de preservação das políticas em Educação e Saúde – áreas essenciais que demandam investimento ampliado no contexto pandêmico. Importante que a parte cabível dessa recomposição seja expressamente enquadrada como fonte de receita tributária para fins do Fundeb, seguindo a ideia geral do parágrafo 8º do Art. 212 da Constituição Federal, de tal maneira que seja salvaguardada a ação redistributiva do sistema de financiamento da Educação Básica pública no Brasil.
*Produzida com apoio de Caio Callegari, especialista em financiamento da Educação
Fonte: Todos pela Educação